Vô(ntade)
Eu nunca te vi bem, de andar rápido, de correr, caminhar com a elegância que todo mundo te descreve.
Não te vi alto, esbelto, forte, charmoso, como nas fotografias. Mal te vi sorrir, de dobrar o nariz e amassar o canto dos olhos, de aparecer as covinhas da sua bochecha, é… Nunca as vi. Enterradas na sua barba agora branca, nunca a tinha visto desalinhada, mas agora não tem mais ninguém para arrumá-la, não tem mais você para fazer o corte certo.
Você nunca me escutou sem que eu tivesse que repetir, e nunca respondeu sem a voz estar rouca – aliás não sei se é algo natural seu ou você foi adquirindo essa rouquidão com o tempo.
Eu queria tanto te ver gargalhar, um farfalho de folhas vindo serenos do fundo de seu diafragma. Quero te ver jovem como nas fotos, em preto e branco, não me importo, queria tocar no seu cabelo e ver se é tão macio assim como sempre pareceu, e te ver, nem que rapidinho sem barba – só para ter uma ideia.
Queria que você beijasse minha testa, me levasse ao cinema, me colocasse para dormir, tomasse sorvete no parque. Queria-te ver cantando ou tocando violão, você tem cara de quem sabe fazer isso, ou de alguém que saberia…
Dançar com você, andar de moto, que você desenhasse comigo como fez há muito tempo atrás – não acredito que só tivemos esse momento uma única vez.
Queria que você direcionasse aquelas perguntas filosóficas para mim e começássemos a criar resoluções e reflexões sobre a vida. Lembro-me muito bem de você discutindo os movimentos involuntários de um passarinho dentro de um ovo – totalmente contrário ao que acabara de ler sobre o assunto, você tirou suas próprias conclusões, mas só eu e outros poucos te ouviram enquanto o tal gênio desfilava suas teses, você nos apresentava outros tantos argumentos para arrematar, mas você nem sabia que eu ouvi, ou que eu concordei, ou que eu me lembro, ou que podia discutir esse tipo de coisa comigo.
Queria que você lesse o que eu escrevo e que deixasse para lá elogios e só fizesse as críticas, queria escrever com você, você me contando a resenha do seu futuro livro e nós dois escrevendo cada um por si, mas juntos, um do lado do outro na mesa da sala de jantar. Eu queria até que você brigasse comigo mais uma vez. Devo ter pirado.
Você sempre guardou o melhor para depois, para ser único e memorável, para você ser inesquecível – mesmo que atingindo essa conquista por ações negativas, ainda marca, principalmente sabendo que ignorando as grosserias de como você pedia e fazia e percebendo o crescimento ao seguir o que você ensinava, as duras causas são o que pagamos para as valiosas consequências que você proporcionou.
Você será lembrando como rei, como exemplo, como o que todos deveriam ser ou ter um pouco – há muito de você em uma discussão e ao entender os comportamentos humanos, há muito de você em uma boa comida ou em um ótimo ponto de vista.
Você marcou com seus poucos sorrisos e poucos olhares, e por terem sido poucos – e consequentemente verdadeiros – valem tão mais.
É incrível pensar que a primeira vez que realmente te toquei foi quando você estava naquele estado, eu ficaria tanto tempo fora que passou pela minha cabeça que talvez aquele fosse o último contato. Que engraçado, o primeiro e o último… Eu quase hesitei porque tocá-lo com esse pensamento seria algo como afirmar que era o fim.
Mas não queria ressentimentos, saber que tive a chance e simplesmente joguei fora. Sua mão era macia, e eu jamais vou me esquecer disso.
Eu queria ter te tocado mais vezes, de esticar a mão, se cumprimentar e se conhecer, sem toda aquela pressão de agradar e não irritar o vovô, queria saber se você ia gostar de mim, mesmo se eu não fosse sua neta. Queria que você me amasse, mas eu teria que te dar razões para isso (e mais que desejar!), me perdoe por não ter o que te dar e estar pedindo tanto.
Eu não queria que seu espírito e corpo tivessem envelhecido tão rápido sem eu ter tido a oportunidade de te conhecer novo como naquelas velhas fotos.
Queria ter mais tempo ao mesmo tanto que não queria que o tempo se movimentasse, e que esse você fosse exatamente como era, da forma que tanto me falaram, da forma que eu queria tanto conhecer. Meus pedidos não são impossíveis, eles são você, você de volta…
Você, sempre esperto, fez dos poucos momentos os mais ricos, são eles que ficam na memória…
Mas eles também deixaram um monte de vontades, vontades de mais, vontade de você, vontade de você de verdade.
Isadora Mello, 2012
Créditos da Imagem: Acervo da minha família