2015,  Textos

A mais curta história de amor

O sol amanhecia em um amarelo vibrante, eu não consegui acreditar que estava acordada o dia inteiro desde ontem e que a gente só saiu da festa porque fomos expulsos, eu nunca havia virado a noite antes de maneira a atravessar a madrugada e já ser sete horas da manhã do dia seguinte sem dormir.

Aquele friozinho de sereno, o dia cinza azulado ganhando cor dourada, o asfalto solitário e longíquo diante de nós desde embaixo dos nossos pés. Os poucos carros que passavam, mas os quais todos mexiam com a gente, buzinavam, ameaçavam nos atropelar, passageiros que colocavam suas caras e mãos pra fora e gritavam, principalmente por causa das nossas chamativas roupas de festa. Algo parecia muito errado naquele momento.

Como se não devêssemos estar ali porque era muito tarde, ou muito cedo. Ou porque parecia que tínhamos congelado no tempo, partido para o futuro ou para o passado sem vestígio, sem caminho, sem passar, e de repente existíamos sem termos vivido.

O tempo escorrendo pelos dedos sem que pudéssemos ver.

A conversa está toda cortada em minha mente. Às vezes eu era espectadora, às vezes eu guiava tudo como uma host de um programa de televisão ou uma cheerleader em torcida, ou às vezes eu era questionada.

Só sabia que de repente eu sabia o nome dele, e o sobrenome, e o nome da mãe dele.

De repente eu zoava a voz rouca dele – que tinha ficado assim naquele momento e ele não havia percebido até direcionar as primeiras palavras a nós.

Eu disse: “você está com voz de idoso, quem sabe sua voz normal quando não rouco seja toda esganiçada”. E ele disse que o absurdo de verdade era ele ter sido o bebê da voz mais grossa possível. Eu morri de rir com a imagem que consegui fazer daquela cena na minha cabeça, de um bebê de voz grossa, e comecei a zoar ele na maior intimidade, ele se defendia brincando, me empurrando gentilmente ou colocando a mão na minha cara, tampando meus olhos ou boca, como se nos conhecêssemos desde sempre e aquilo fosse “uma coisa nossa”.

Eu não parei de voltar a falar da voz dele, porque eu estava a bêbada inconsequente que não percebe quando a piada já se esgotou e perdeu a graça. Ele parou bem sério uma hora e disse: “Tem que me ouvir na cama”.

Eu fiquei sem reação.

Não sabia nem se ele estava me cantando de verdade ou só querendo me parar.

A gente descobriu que o carro dele estava no exato fim do mundo que gostaríamos de chegar. A paisagem era bonita, parecíamos sozinhos e desolados. O cerrado era de um amarelo vívido, o tempo começava a esquentar e o lago estava logo ao lado. A gente era capaz de correr e nos atirarmos à água naquele exato segundo porque já estávamos imprudentes o suficiente.

Às vezes o caminho se resumia em mato e em campos, e eu tirava meus sapatos e andava pela grama, os pés úmidos naquele orvalho geladinho, as plantinhas que grudam.

Ele sempre ao meu lado, até ser só eu e ele.

E a conversa foi ficando mais séria, menos devaneio ou piada, menos bêbados. Era sobre: para quem somos, porque somos, e como somos. E muito do que ainda iríamos ser.

Ele era bonito, alto, moreno, vistoso, pintas pelo rosto, papo agradável. E o toque, o toque especial era ver que ele falava e ouvia, e que a gente combinava.

E como o destino havia sido certeiro em nos conectar naquele momento. Nos imprevistos da vida que nos une. Nas coincidências. Onde parece fazer sentido. Onde parece que algo deve ser, porque tem que ser.

Então foi toda uma conversa sobre literatura e cinema, de uma forma que eu não podia nem acreditar em como ela se desenvolvia e eu me encontrava. E ele estava em êxtase também, por eu entendê-lo. As nossas palavras até combinavam, a gente dizia os mesmos nomes ao mesmo tempo ou apenas nos víamos estupefatos um com o outro: “sim!! É isso que eu ia dizer!”

Eu fiquei contente e orgulhosa porque um dos meus lados adormecidos recuperavam a vida. É como se eu pudesse falar de cultura e do mundo. Não só porque eu soubesse, mas porque eu sabia falar, eu sabia viver, porque eu era apaixonada pelas coisas que tinha prazer em lhe contar.

Como se saindo da minha boca, elas ganhassem mais cor e consistência até serem paupáveis o suficientes para ele ver e aderir, porque confiaria em mim, no que ele sentiria quando ele dissesse. Como se pudéssemos passar horas juntos falando sobre isso, em cenários diversos… diários…

Então de repente eu me vi cheia de conhecimento e confiança, orgulhosa de ter falado tudo o que eu sei em um caminho aberto para as palavras serem livres e fluirem. É como se até então eu não tivesse consciência do que eu sei, do que eu sou capaz, e por consequência, o que eu sou.

E tivesse a oportunidade de mostrar, de saber que é o tipo de coisa que alguém deve te escutar, e falar com você, que deve existir um diálogo, uma troca, algo que geralmente não consigo encontrar, alguém que escute, que me leve a novos caminhos, alguém com quem compartilhar o próprio viver.

Foi isso tudo o que ele me fez sentir, em poucas horas de caminhada e conversa a sós. O grupo estava ali, mas parecia só nós dois no final das contas. Eu sabia que quando acabasse nosso contato ao chegarmos em nosso destino, eu iria precisar de mais, eu ia necessitar saber como encontrá-lo de novo, como tê-lo por mais tempo.

Ele até citou trechos de textos para mim e retratou. Não havia nada como me sentir inteligente com alguém inteligente, sem boicotes, sem competição, sem melhor ou pior, só nos dois compartilhando coisas boas da vida. Em uma troca saudável, complementos ao que sabíamos, introdução a novas decobertas, do que um acrescentava para o outro. O que mostrávamos por nossos olhos.

Ele podia ter ido embora, mas resolveu ficar. Saímos todos juntos para comer e então não éramos só nós dois, porque os outros agora recebiam nossa atenção e não conseguíamos nos diespersar só em nós dois como antes. Acho que ele quis aumentar o tempo junto oferecendo carona, mas por eu ser a menor entre meus amigos eu fui logo deslocada para o banco de trás, não pudemos mais ficar próximos conversando sem ter que atravessar por todas as cabeças dos outros, então acabei dormindo e nem falei com ele.

Na hora de nos despedirmos, quando ele chegou no prédio, todos desceram do carro enquanto ele encarava o volante,  eu restei no meio sozinha, fui a última e ele virou.

Eu ali no banco de trás, o tempo congelou, os olhos dele queriam dizer tanta coisa porque ele sempre tinha algo a falar.

E eu quis ver mais, como sempre quis ver, súplica, vontade, sofrimento, sinal, pedido.

Quis ver que o que ele queria falar era:

– “fique” ou “nos encontraremos de novo”

Mas ele apenas disse “beijo”

Disse tão longamente e olhando tão fixamente para mim como se pedisse para que eu o beijasse ali mesmo. Mas meu amigo me esperava do lado de fora do carro segurando a porta. Eu tive pouco tempo para pensar e eu sei que sou uma maluca que vê demais, imagina muito, exagera. E eu não queria arriscar.

Coloquei a palma da minha mão na boca e mandei um beijo voado – e foi ali que eu senti que ele queria mais – mas eu apenas parti agradecendo.

Sentindo e querendo vê-lo de novo, vê-lo logo, vê-lo mais, vê-lo muito, sempre.

Mas eu apenas parti, e não olhei para trás.

 

 

Por: Isadora Mello, 2015

Créditos da Imagem: Weheartit

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