Bebê a Bordo
Eu não deveria estar aqui. Eles me disseram. Por mais que os avanços médicos me garantam saber não apenas o dia, mas o horário exato do seu nascimento (e não ser hoje). Me falaram para não arriscar.
Você não seria o primeiro bebê nascido nos ares, a história pode ser bem mais emocionante do que parece. Imagine um médico entre os passageiros do avião. Essa história você contaria para todos, desde o ensino fundamental para os colegas, numa redação escolar, em um jantar romântico no primeiro encontro com sua futura cara metade, numa roda de mesa de bar entre cervejas pingando. Talvez muita gente não fosse acreditar.
Seu pai diria que o maio risco seria você nascer em São Paulo, no final das contas, isso é o que mais assusta ele, esse seria um risco que ele não gostaria de encarar no final das contas. Ter um filho paulista. Logo ele, carioca da gema. Lapa no coração, Flamengo na alma, chiado gostoso, onde gostaria de te dar um nome que acabasse chiando também. “Guxtavo, Excobar”.
Mas que você me perdoe meu filho, porque estou precisando realizar essa viagem, eu não arriscaria se não fosse algo tão importante. Eu preciso ver minha mãe pois ela acabou por estar um pouco debilitada para ir lá para casa. Preciso confessar que há até um risco de essa ser a última vez que a veja. E isso de certa forma significa que você jamais a irá conhecer. A não ser que você nasça antes da hora, e paulista mesmo.
Eu queria que você pudesse conhecê-la, eu torcerei até o fim para que isso nos seja possível, pelo menos uma vezinha. Que você tenha o privilégio de conhecer essa mulher, que seria uma das melhores avós. Que faria comida gostosa, cantaria para você, te levaria para passear para tomar um sol. Eu queria ser metade da mãe que ela foi para mm.
Você vai escutar a voz dela, por mais que jamais se lembre. Sentirá a pressão da mão dela contra a barriga – espero que você chute demonstrando a resposta, você chuta por coisas tão menos importantes do que esse evento, quer dizer, sem pressão.
A comunicação em código Morse, talvez o único contato. Nós nunca estamos realmente preparados para isso, não importa o tanto que eu venha me convencendo, em relação à morte, em relação à ser mãe, sobre aceitar a morte da minha mãe.
Só de escrever isso já me causa calafrios, ou talvez seja apenas a intensidade da decolagem, o ar condicionado gelado. Esse balançar suave até que o avião adquira estabilidade e não seja tão leve e entre as correntes de ar que o atravessam, seu corpo branco de metal assemelha-se a um papel.
Como algo tão duro e resistente tremeleia tanto e pode parecer tão frágil ao mesmo tempo? Como apenas duas asas são capazes de permitir o voo de aparato tão enorme e de tantas toneladas?
Parece desafiar as leis da física, da gravidade. Assim como eu, e me perdoe se estou fazendo trocadilhos sem graça, estou desafiando as leis do meu físico, de gravidez, com oito meses de você em mim. E te trazendo todas essas emoções jamais sentidas, como um baque, que te tira do conforto. Se isso já tem efeito sobre mim, imagina em você? Então como não, com você? “Não viaje com oito meses” – eles disseram, e aqui estou eu.
Logo você, meu bem, que já demostra medo de elevadores e de altura. Como te deixar nesse nível de maneira permanente?
Desafio as leis da gravidade da doença de minha mãe, fazendo piadas sem graça e esperando que ela viva mais do que o prescrito.
Enquanto eu quero que você venha na data marcada, ou um pouco antes, eu espero que os dias de minha mãe não estejam contados, que eles demorem a chegar. Me vejo nessa dualidade de vida e morte, e como isso me faz pensar e refletir sobre tantas coisas.
Talvez seja só esse ócio durante a viagem silenciosa, que não tem muita coisa a se fazer, cujas turbinas do avião parecem daqui de dentro apenas um sopro forte.
Me atrevo a deixar essas teorias virem até mim e que minha cabeça viaje tanto quanto meu corpo neste exato momento, literalmente.
Mas me pergunto se minha mãe está se preparando para ir embora desse mundo, como uma forma de estar preparando o terreno, o espaço para que você ocupe, para que você chegue. Eu não tenho a minha religião muito clara, meu filho, quem sabe quando você nasça e cresça eu consiga vir a me despertar espiritualmente e desvende ou compreenda esses mistérios da vida. Ou quem sabe continuarei como estou. Mas eu estaria mentindo se ao menos não confessasse que no pensamento mais íntimo e sutil, me pergunto se você não seria a reencarnação da minha mãe, Isso significaria que agora, neste momento que vejo minha barriga, você não teria alma. E todos os outros meses foram assim, não havia nada. Mas como então? Já que sempre consto te entender, e te sentir? Isso também significaria que ela morreria antes que você nascesse, então a alma dela viajaria até encontrar o seu corpo, e eu não saberia dizer se enquanto você está no meu corpo, se isso seria possível.
Além disso, também significaria que eu seria mãe da minha mãe. E isso seria ter que preferir entre tê-la como filha reencarnada em você, e aceitar tudo o que envolve a religião espírita, e as vidas passadas, ou preferir tê-la como sua avó. Que ela chegue a ter essa oportunidade e que nós também sejamos presenteados com esse privilégio e ela esteja viva quando você chegar.
Somente sei que não posso ter as duas coisas ao mesmo tempo, e pode acabar não sendo nenhuma das duas opções no final. Um acontecimento anula o outro, e ambos podem ser impossíveis e irreais. É muito arriscado colocar todas as minhas fichas em uma religião que eu nem sei bem como funciona, e que nem sei nem mesmo se acredito. Não posso começar a acreditar e a ter fé apenas nos momentos que me convém, para ser positiva. Não posso me iludir com as esperanças, alimentar ilusões de que ela pode melhorar. E a realidade não é tão simples assim para resumir as origens da vida e as consequências da morte.
A turbulência intensificou-se agora, como um sinal de que é perigoso pensar e escrever sobre essas coisas. Bancar a adivinhadora.
Minha escrita começa a sair toda tremida, ficando em garranchos, saindo da linha, destruindo a uniformidade do álbum que venho construindo com tanto capricho.
As luzes com as instruções para se colocarem os cintos acendeu-se. A comissária faz um anúncio nesse sistema horrível de áudio que sai todo abafado. Eu percebo que agora respiro pela boca, e que começo a suar frio. Eles me falaram para não viajar.
Foco na escrita para que ninguém se preocupe comigo. Uma gravida já chama muita atenção. A barriga grande assusta, todos foram de mil cuidados e atenções. Não quero me sentir ainda mais culpada de ser tão desobediente ao pegar um vôo.
Você está assustado meu filho, eu posso sentir. Tenho uma vontade latente de chorar, mas sei que as lágrimas, essa vontade, não são particulares minhas. Eu culparia tão e somente você mesmo. Eu queria que você não se preocupasse pois tenho certeza que nada de mal nos ocorrerá. Das poucas certezas que levo da vida. Essa é uma delas. Não queria que isso te assustasse. Queria que assustasse só a mim, no máximo.
A tremedeira prossegue, o avião sobe e desce como se não encontrasse um ponto fixo para seguir, tudo a mercê das correntes de ar. As pessoas ao meu redor não parecerem tão assustadas como eu estou. Devem estar muito mais acostumadas com esses vôos do que eu.
Fazia tempo realmente que eu não viajava. Estou eu aqui então, com calafrios, e apertando os olhos, tentando controlar a respiração.
Quando ouço um choro de criança, paro extasiada, aperto ainda mais os olhos; o choro vai subindo de intensidade. O casal sentado nos assentos ao meu lado, bufam de raiva, o homem revira os olhos e a mulher apoia a própria mão na testa, incomodados com o choro do bebê mais do que com a turbulência, como mais alguns outros passageiros. Eu ouvi ela deixar escapar: “Só me faltava essa”
Um outro bebê começa a chorar, de algumas cadeiras mais para trás, talvez ativado e despertado pelo choro do primeiro, talvez revoltado com a turbulência incessante. Viro minha cabeça para procurar os bebês e suas mães, mas encontro pelo caminho muito mais caras mal-humoradas por conta dos berreiros que se juntaram em uníssono.
Viro-me para frente novamente e me remexo no assento levando meu corpo para trás como se quisesse ser sugada pela poltrona. Ergo um pouco a cabeça, fecho os olhos e sorrio. Ignoro as pulsadas, galopes e golpes do avião, e me tranquilizo na canção daquele choro conjunto que me traz calma e alegria no coração. De saber que falta pouco para eu ouvir a sua voz, os seus sons. Como se fosse um aviso seu, enviado por aqueles bebês que já têm a capacidade de demonstrar seus sentimentos muitas vezes pelos choros.
E aquilo foi como música para os meus ouvidos, enviada por você. Que me fez esquecer e abandonar os medos do agito e tumulto, de pensar na morte e no que acontecia depois, e apenas lembrar das coisas maiores e melhores que estão por vir.
Como você.
Por: Isadora Mello, 2017
Créditos da Imagem: Weheartit
Parte III – “Em nome da Mãe”